top of page

Ornamento é crime

José Augusto Ribeiro

​

   A produção recente de relevos, pinturas e desenhos de Laura Teixeira descende diretamente das experimentações gráficas que a artista realiza, sobretudo como ilustradora, desde o começo dos anos 2000. As duas extensões de trabalho têm em comum, entre outras coisas, a lida com materiais do mundo prático, com itens que não são necessariamente artísticos, para a construção de imagens e estruturas constituídas por simetrias de equilíbrio instável, formas curvas e elementos que se repetem. A inspirar, em geral, ações de crescimento, irradiação e transbordamento, numa opulência que não é da ordem do luxo nem do desperdício, mas da quebra de limite.

   Há 10 anos, Laura concebeu o livro Bolinha branca (publicado pela editora Mov Palavras, em 2014) apenas com etiquetas adesivas redondas e coloridas que, justa e sobrepostas, figuram os espaços, os seres e os objetos de cada cena da narrativa. Agora, a artista utiliza esmalte de unha, aplique de cabelo e artigos de armarinho, na elaboração de trabalhos que transfiguram o erótico com uma força sugestiva ampla, capaz de evocar e aglutinar esferas diversas da vida.

   As peças que compõem esta exposição na galeria Pilar remetem ao ambiente dos salões de beleza, a cortinas e palco de teatro, a flores, a desenhos das ciências biológicas, às genitálias feminina e masculina, a vestidos de noiva, maiôs e joias, a corpos celestes, à massa de pão, a bolos confeitados, ao chapisco de paredes e tetos, a adereços de carnaval, a elementos arquitetônicos, a objetos de decoração, bibelôs, espelhos, portais, oratórios etc. Até certo ponto, Laura continua a “desenhar” a partir de objetos e com a lógica segundo a qual de uma coisa nascem outras tantas. 

   Mas diferentemente do que ocorre com suas ilustrações, os desenhos, pinturas e relevos que ela produz em ritmo contínuo nos últimos três anos não foram pensados para acompanhar uma história, um ensaio, um artigo, nem para serem reproduzidos em papel. Tais peças são autônomas, estão no mundo por conta e risco próprios, a inspirar intimismo e um tanto de aversão. Porque há uma atmosfera de domesticidade, como aquela produzida pelos objetos e os enfeites da casa, nos trabalhos reunidos aqui. 

   Fora isso, o capricho com que essas unidades são feitas denuncia o afeto (e a labuta) investidos em cada uma. Principalmente na modelagem das peças de cerâmica fria, fica patente a satisfação tátil de moldar as formas curvas, abrir os buracos, de preparar as superfícies lisas, as superfícies ásperas, com suas dezenas de pontas, como se fosse merengue; de elevar e dar contorno a linhas que lembram veias, raízes, lábios. E tal júbilo é também visual. Os cosméticos, os adornos, o brilho das pérolas, do ouro e da prata falsos; os gestos de feitura, os frisos, os cantos arredondados, chanfrados, e o apreço pelos detalhes; tudo parece apontar para um desejo de beleza e conforto que, no entanto, se dirige à desmesura; motivações que não se contentam apenas com o formato retangular ou quadrado para suas estruturas; e que, apesar da composição espelhada de suas construções, tendem à irregularidade.

   O pensamento experimental que orienta essa produção testa materiais, procedimentos, linguagens e repertórios distintos, ao cruzar conhecimentos das artes visuais e das artes gráficas, do design e da arquitetura, ao articular lições do nouveau, do decó, do moderno, dos abstracionismos, do surrealismo, da pop... Há minúcias, acúmulos, há encantos e estranhezas, humor e lascívia, nesses hibridismos. Logo, aquele esmero das realizações não redunda em nenhuma ideia parecida com perfeição. Nem em sentimentalismo. Na sua complexidade, uma pintura dourada e com cabelos compridos está dotada de poderes para seduzir, divertir e desagradar. Como, então, os ornamentos seriam aqui apenas supérfluos, a constituir uma mera aparência? O ornamento, ao contrário, é estrutural – é o osso, a carne, a pele e o pelo dessas coisas todas. 

   O título da exposição reporta a um texto famoso do arquiteto austríaco Adolf Loos (1870-1933), Ornamento e crime. Nesse ensaio-quase-manifesto, escrito em 1908, o autor relaciona a ornamentação a um comportamento amoral, a um retrocesso na jornada teleológica e civilizatória que desaguou na ideia de forma pura, exercida por segmentos da arquitetura e da arte moderna. Em formulações bastante virulentas, o autor associa negativamente o decorativo ao erotismo, a processos de degeneração; à criança que rabisca paredes, ao papua que se tatua. Então, nesse sentido, sim, o ornamento dos trabalhos de Laura Teixeira é crime, desvio – um prazer ligado à transgressão e aos excessos, portanto, na contramão de essencialismos.

​

​

 

 

Objeto Cor-de-Rosa

Julie Dumont / The Bridge Project

 

   Sonhou com a avó. Ela tinha se tornado um laço cor-de-rosa: um objeto e uma cor para amarrar memórias e afetos, organizá-los na trama da consciência antes de poderem ser traduzidos e deslocados no campo visual.

   Assim como os sonhos, o desenho acontece, na prática de Laura Teixeira, no limiar da vigília, tateando no escuro, num espaço meditativo no qual nada e tudo faz sentido e no qual a mão faz e desfaz os nós da cabeça da artista como tantos exercícios de escrita automática. O movimento aqui é para dentro, é uma queda livre no campo do subjetivo, em algum lugar bem no meio, que antecede toda compreensão.

   Essa organização interna é visível na estrutura das obras que nascem a partir de um eixo central, como o meio de um livro, para se espalhar dos dois lados, como manchas de testes de Rorschach ou as asas de uma borboleta.

   Por outro lado, o movimento inerente à intuição que inspira a artista também se reflete fisicamente na sua produção: móvel, fugaz e mutável, ele revela uma intermediação direta com o mundo. Essa abertura a processos intuitivos é o laço que – segundo Henri Bergson – constitui o vínculo com o outro, com a alteridade, e se cria nas premissas de uma curiosidade pelas facetas que compõem a nossa própria personalidade. Olhamos para o outro dentro de nós, como no caso dos neurônios espelhos: ensaiamos para nós mesmo o que acontece lá fora, criando uma abertura para o outro, uma simpatia que se espelha, se repete e vai reverberando de dentro para fora como tantos círculos deixados por ricochetes na superfície de um lago, até chegar na sua beira.

   Dentro desse espaço intuitivo de experimentação, o trabalho de Laura Teixeira brota, entre lembranças e impulsos. Ele incorpora e organiza memórias afetivas e sensoriais diversas, sugerindo frequentemente uma certa materialidade e se desdobrando então, no relevo ou no objeto. Refletindo algo que não está à mostra, como tantos espelhos cegos, as obras da artista têm uma escala íntima, do tamanho do cotidiano, de xícaras de chá e descansos de louças. Nelas, todos os sentidos estão convocados. Operando entre a sedução retiniana das camadas de cores dos esmaltes de unha que alternam opacidade e transparências e o apelo tátil da pasta de modelagem ou de um aplique de cabelo reluzente, as obras chamam a sensorialidade ao evocar o veludo de uma poltrona alisada pela mão de uma criança ou o glacê de um bolo de aniversário.

   O humor também permeia a organização despretensiosa desses elementos aparentemente aleatórios, deixando aparecer a artista mirim brincalhona, a lembrança de festas de carnaval com seus clóvis mascarados e, nas entrelinhas desse humor algodão doce das memórias de criança, o gosto acidulado de balinhas cítricas que ardem na língua, com um sarro leve da sociedade machista, da suposta fragilidade feminina, e do absurdo das normas e desvios políticos que as acompanham.

   Laura Teixeira cria assim um universo entre meditação e zoeira suave, no qual paisagens abstratas e altares de madeira pintada se enfeitam de cílios postiços ou de pompons, enquanto coques de cabelo de princesa e mostruários para esmaltes de unhas enquadram objetos-esculturas de parede. Como tantas pontes desenhadas entre universos aparentemente distantes, a artista mistura, num sistema subjetivo não hierarquizado, a cultura popular brasileira, histórias em quadrinhos e reminiscências da infância, nas quais pétalas de flores simulavam unhas pintadas. Frente a esse caos organizado, se desperta a vontade de cortar uma fatia de bolo para saborear com um café bem quente, aconchegado em uma poltrona antiga de veludo no canto de uma sala, perto de uma lareira crepitante. Pois é isso que a artista propicia: uma viagem no tempo e nas sensações, no fluxo autônomo da poiesis, dando um nó e amarrando afetos e coisas que ainda não tem nome com um laço cor-de-rosa.

 

​

bottom of page